É terça. Ela acorda cedo, cedo demais. Às tontas, levanta feito um rojão e esfrega os olhos como se quisesse sair imediatamente de um transe – parece que pegou no sono há dez minutos: mal dormiu, já despertou.
Não acende as luzes: teme despertar os pequenos, que dormem como anjos, silenciosamente. Com o tato, lança mão do vestido surrado de estampas simétricas, e agarra um par de sapatilhas. Nos cabelos, um coque feito com algum esmero é delicadamente enfeitado com uma flor graciosa, flor essa que denuncia a pouca vaidade que ainda lhe resta. As pernas, de tanto subir e descer ladeiras, são bem bonitas e esculpidas. Na juventude, eram as idas à gafieira que as mantinham assim.
Fecha vagarosamente o portão, que range como se reclamasse por ser incomodado tão precocemente. O dia ainda nem se atreveu a clarear. O estômago dela também reclama da falta de um café preto, mas é necessário correr. Correr para o mundo, mesmo que só pensando em voltar.
Ela é quase uma artista circense: faz malabarismos para encaixar-se no trem, para pagar as contas, para fazer o pouco que há no bolso sobrar ao final do mês, para comprar pipoca e refri no dia do aniversário dos rebentos, para vê-los girarem no parquinho vez ou outra. A expressão deles sorrindo no parque, imagem solta em seus pensamentos, a faz flutuar em meio àquele caos matinal. São esses doces pensamentos que a distraem, enquanto os outros ouvem músicas em seus fones de ouvido, alheios e carrancudos, imersos em seus próprios mundos.
As esperanças de que ‘ele’ um dia voltasse estão perdidas: o jeito foi fazer-se presente e onipresente, para tudo o que pudesse vir desde então. Um dia, apaixonou-se perdidamente... mas desde que isso se tornou passado e lembrança, esqueceu-o. Nem o nome do Fulano ela pronuncia mais. Para quem pergunta, ele é o ‘pai dos filhos’, nada mais que isso. No fundo sofreu, óbvio que sim. Mas o papel de coitadinha nunca lhe coube, definitivamente: tem fibra, acredita, segue em frente, não se abate. Até uma fézinha na Mega Sena ela faz, vez ou outra. Não tem Bolsa-Família, Bolsa-escola, Bolsa-Parente, Bolsa-do-Morro, Bolsa-da-Enchente, Bolsa-da-Desquitada. Ela faz o pé de meia, e põe o pé na estrada, com gana e com graça [por que não?]. Não quer ser alvo de pena, nem de lamúria -- ah, e nem de bala perdida vinda do morro, se possível for. Tem seu pequeno clã pra criar, e orgulha-se dessa divina incumbência.
Quando a porta do trem se abre, ela sai, junto com a multidão ‘homogênea’ e unida num bloco só, pisando de leve, mas sendo empurrada, suor minando no rosto, vestido amarrotado, grunhidos. É, o bicho está sempre pegando. Sorte dela, que nasceu com uma paciência oriental e inabalável.
Ela desliza habilidosamente pelos quarteirões confusos que ali se amontoam, e logo depois chega ao trabalho. O sol já castiga demais. Ela faz o sinal da cruz, põe-se pronta, respira fundo, dá bom dia ao porteiro, chega ao apartamento da patroa. Lá, o dia é longo, cansativo, repleto de tarefas. Horas passam, uma a uma.
Ao cair da noite, retornando com dois algodões doces, ela vê o milagre através do qual duas crianças podem se transformar em dois grandes e plenos sorrisos: deixa-os beliscar as guloseimas, inebriados de alegria, mas de olho no jantar a três, que ainda está por preparar. Ali, naquela fração de segundo, convence-se de que todo o sufoco de hoje foi válido, e de que está pronta para repeti-lo outra vez, em nome deles, forte em sua fé.
Não acende as luzes: teme despertar os pequenos, que dormem como anjos, silenciosamente. Com o tato, lança mão do vestido surrado de estampas simétricas, e agarra um par de sapatilhas. Nos cabelos, um coque feito com algum esmero é delicadamente enfeitado com uma flor graciosa, flor essa que denuncia a pouca vaidade que ainda lhe resta. As pernas, de tanto subir e descer ladeiras, são bem bonitas e esculpidas. Na juventude, eram as idas à gafieira que as mantinham assim.
Fecha vagarosamente o portão, que range como se reclamasse por ser incomodado tão precocemente. O dia ainda nem se atreveu a clarear. O estômago dela também reclama da falta de um café preto, mas é necessário correr. Correr para o mundo, mesmo que só pensando em voltar.
Ela é quase uma artista circense: faz malabarismos para encaixar-se no trem, para pagar as contas, para fazer o pouco que há no bolso sobrar ao final do mês, para comprar pipoca e refri no dia do aniversário dos rebentos, para vê-los girarem no parquinho vez ou outra. A expressão deles sorrindo no parque, imagem solta em seus pensamentos, a faz flutuar em meio àquele caos matinal. São esses doces pensamentos que a distraem, enquanto os outros ouvem músicas em seus fones de ouvido, alheios e carrancudos, imersos em seus próprios mundos.
As esperanças de que ‘ele’ um dia voltasse estão perdidas: o jeito foi fazer-se presente e onipresente, para tudo o que pudesse vir desde então. Um dia, apaixonou-se perdidamente... mas desde que isso se tornou passado e lembrança, esqueceu-o. Nem o nome do Fulano ela pronuncia mais. Para quem pergunta, ele é o ‘pai dos filhos’, nada mais que isso. No fundo sofreu, óbvio que sim. Mas o papel de coitadinha nunca lhe coube, definitivamente: tem fibra, acredita, segue em frente, não se abate. Até uma fézinha na Mega Sena ela faz, vez ou outra. Não tem Bolsa-Família, Bolsa-escola, Bolsa-Parente, Bolsa-do-Morro, Bolsa-da-Enchente, Bolsa-da-Desquitada. Ela faz o pé de meia, e põe o pé na estrada, com gana e com graça [por que não?]. Não quer ser alvo de pena, nem de lamúria -- ah, e nem de bala perdida vinda do morro, se possível for. Tem seu pequeno clã pra criar, e orgulha-se dessa divina incumbência.
Quando a porta do trem se abre, ela sai, junto com a multidão ‘homogênea’ e unida num bloco só, pisando de leve, mas sendo empurrada, suor minando no rosto, vestido amarrotado, grunhidos. É, o bicho está sempre pegando. Sorte dela, que nasceu com uma paciência oriental e inabalável.
Ela desliza habilidosamente pelos quarteirões confusos que ali se amontoam, e logo depois chega ao trabalho. O sol já castiga demais. Ela faz o sinal da cruz, põe-se pronta, respira fundo, dá bom dia ao porteiro, chega ao apartamento da patroa. Lá, o dia é longo, cansativo, repleto de tarefas. Horas passam, uma a uma.
Ao cair da noite, retornando com dois algodões doces, ela vê o milagre através do qual duas crianças podem se transformar em dois grandes e plenos sorrisos: deixa-os beliscar as guloseimas, inebriados de alegria, mas de olho no jantar a três, que ainda está por preparar. Ali, naquela fração de segundo, convence-se de que todo o sufoco de hoje foi válido, e de que está pronta para repeti-lo outra vez, em nome deles, forte em sua fé.
Se olhar bem existem muitas dessas mulheres por aí, mas infelismente não são todas que levam tã bem assim...
ResponderExcluirEu não sou, ou melhor, não fui mãe porque sei que eu não seria assim. Por que forçar uma barra, mesmo ainda tendo dúvidas se fiz ou não a coisa certa? Adimiro todas essas mulheres...Parabéns a todas elas e a você Karina também, Bjo
ResponderExcluirVejo a realidade nua e crua, uma mãe que tem que trabalhar para sustentar uma familia sozinha. Sinto muita realidade vindo dai, gostei muito da maneira como escreve, descreve, encanta coma realidade. Quando li estava escutando Stein Um Stein, do Rammstein, deu clima tão real e obscuro, que tornou a leitura memorável, parabéns...
ResponderExcluirhttp://candrevasblog.blogspot.com/
Hoje em dia somos tão "viciados" na ficção mas nada é tão impressionante como a realidade em meio ao caos e o sofrimento das pessoas... este texto retrata bem o que é isso.
ResponderExcluirMuito bom, parabéns!!!
É louvável quando as mulheres assumem esse papel de mãe mas acho que requer um pouco de preparo espiritual...
ResponderExcluirabçs
A vida não é fácil não, e a vida não é novela, talvez uma mexicana quem sabe haha Bjs
ResponderExcluirADOREI SEU TEXTO .E É MT DIFICIL SUSTENTAR 2 FILHOS SOZINHAS .AINDA PORCIMA TER Q ACORDAR TODO DIA CEDO E SABER Q VC TEM Q TRAB P PODER PAGAR SUA MORADIA ..ACREDITO Q ISSO SEJA + DIFICIL .ATE MSM POR Q OS FILHOS NOS PAGA SEMPRE COM UM LINDO SORRISO E UM BEIJO DE BOA NOITE ANTES DE DORMI
ResponderExcluirBEIJOSSSSSSSSSSS
Gostei bastante do texto, gostei mais ainda da foto do algodão doce. Sou viciado.
ResponderExcluirVida de m~çae solteira não deve ser fácil, e com certeza não é como nas novelas.
Verball
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Adorei o texto, de verdade. Hoje em dia nós visamos a vida em um padrão fora do nosso alcançe. Admiro essa mulheres, que dão valor às pequenas coisas da vida.
ResponderExcluirSe você escrevesse um livro eu leria concerteza! rs
'É, não! O que mostra na novela é a realidade!!' - sempre ouço esses tipos de coisa de algumas clientes da minha mãe... E eu fico bem pensando o que as pessoas fazem com os neurônios que estão lá dentro da cabeça delas...
ResponderExcluirOlá mulheres!
ResponderExcluirEstou com um blog novo, espero que gostem. :D
Esse trecho me lembrou muito a minha mãe: "Ela é quase uma artista circense: faz malabarismos para encaixar-se no trem, para pagar as contas, para fazer o pouco que há no bolso sobrar ao final do mês, para comprar pipoca e refri no dia do aniversário dos rebentos, para vê-los girarem no parquinho vez ou outra. A expressão deles sorrindo no parque, imagem solta em seus pensamentos, a faz flutuar em meio àquele caos matinal. São esses doces pensamentos que a distraem, enquanto os outros ouvem músicas em seus fones de ouvido, alheios e carrancudos, imersos em seus próprios mundos."
LINDO!
Beijos, até.
Tem um selinho pra vocês no meu blog.
ResponderExcluirMeu pai morreu quando tinha apenas 9 meses de idade, daí em diante minha mãe é que tomou as rédeas da minha educação e posso dizer que ela foi muito bem sucedida, aliás, ainda é, graças a Deus.
ResponderExcluirA história deu ma entre tantas supermulheres.
ResponderExcluirExistem mais mulheres assim como esta do que se pensa.
ResponderExcluirGOSTEI DA COLOCAÇÃO DO SEU TEXTO ...
ResponderExcluirTB SOU DE SE GUARULHOS!
SUCESSO COM SEU BLOG!
QUANDO PUDER VISITA O MEU TB!
BEIJOS!
http://yaseryusuf.blogspot.com/
Oi Ká,
ResponderExcluirMandou muito bem com seu texto.Olha, ser mae de uma unica filha , com um marido companheiro que ajuda de verdade SEMPRE e ainda trabalhar.........nao é nada fácil, mas se pensarmos bem ..ainda temos uma certa estrutura se comparada com as milhares de mães sózinhas e batalhadoras como vc descreveu.Adorei o texto!
bjs
Flavia
vc vem evoluindo a cada texto e esse deu um enorme nível de evolução. meus parabéns
ResponderExcluirQue texto maravilhoso. Sou sortudo por ter lido-o. Você escreve de forma graciosa e simples. Vejo traços de Clarice Lispector nesta obra. Que mulher guerreira esta apresentada por você. De pensar que existem muitas como ela, que batalham por este mundo de Meu Deus. São pessoas assim que mostram o valor humano não esta perdido, que por mais inacreditável que possa parecer, existe amor e existe vida.
ResponderExcluirAdorei o texto, simplesmente adorei.
ResponderExcluirEu admiro muito mulheres forte. Criar filhos sozinha é um tarefa árdua. E sinto por não poder entender completamente, pois sei que a relação de mãe é diferente. Já senti inveja desse amor xD
Jamais seria capaz de abandonar meus filhos.
E acho corretíssimo, se ele o fez, ele não é nada além do pai.
nossa, que lindo. o amor maternal é uma das coisas mais lindas que a gente tem, e a sutileza do seu texto expressou isso exatamente da forma que é!
ResponderExcluirKari, parabéns pelo texto... simplesmente precioso. As descrições, metáforas, comparações sensacionais... Sou seu fã e vc sabe disso! Parabéns!
ResponderExcluirMto bom o Texto ;)
ResponderExcluirvc escreve muito bem :D parabéns!
ResponderExcluirum texto uma realidade...quantas pessoas não passam por isso todos os dias...mas nunca desistindo de lutar por aquilo ou por alguém...afinal um sorriso sincero no fim do dia...vale muito mais que dinheiro...
ResponderExcluirPURA REALIDADE. O JEITO QUE VC ESCREVE ME PRENDEU. OBRIGADA POR ENCERRAR MEU DOMINGO DE FORMA DIGNA.. E PRECISO COMENTAR ESSA FRASE... PQ MEIGA É A HELLO KITTY HUAHUAHUAHUAHUAHA.. AMEI
ResponderExcluirQue bonito :')
ResponderExcluirwww.renansparrow.blogspot.com
;*
quantas pessoas fazem filho e nao tem noção do que é criar e sustentar um filho sozinha!
ResponderExcluirparabéns pelo texto
http://sentadonogramado.blogspot.com/
Mesmo não sendo experiências idênticas, o jeito de contar a história me lembrou o seriado da Globo 'Tudo novo de novo'.
ResponderExcluirmeio previsível, mas muito bem escrito gramaticalmente
ResponderExcluirbeijo
Como um ser desses pode ser frágil? enganou-se quem inventou isso. Mulher: garra, luta, força...
ResponderExcluirAlguém andou assistindo a "Linha de Passe", é?
ResponderExcluirJá cheguei a comentar nesse, mas gostei tanto que vou comentar nele de novo...rsrs
ResponderExcluirGosto muito da realidade nua e crua como retrata, e o jogo de cintura demonstrado, que no geral, várias pessoas são assim também...Hoje re-assisti Sociedade dos Poetas mortos, e ainda estou um pouco estagnado, a maneira como deixamos nossa vida e conduzimos ela...Realmente fazemos com bom senso o que amamos?
Você é muito criativa, escreve muito bem...
ResponderExcluirparabéns pelo post e pelo blog...
ADOREI o conceito do blog, MESMO!! Estou buscando algumas opiniões/críticas sobre o meu, então se puderem dar uma passada ficaria mt honrada: desconsertando.blogspot.com -bjs e até!-
ResponderExcluirTem quer ser guerreiro nesta vida. Há aquelas que sabem levar a vida. Tudo em função dos filhos...
ResponderExcluirBelo texto!
É bem assim, sem novidades
ResponderExcluirabç
Pobre Esponja
adooorei o blog *-*
ResponderExcluirbeijos.
É lamentável que esse tipo de reconhecimento não aconteça por parte de quem realmente pode ajudar essas mulheres, pois elas nem ao menos sabem que vcs falam delas. Não têm acesso, não sobra tempo...
ResponderExcluirO texto é bom, mas sem efeito prático.
Me parte o coração ler isto pra minha mãe, que é uma delas e depois de todas as palavras ouvi-la dizer: fazer o que se essa é vida que Deus nos deu, meu filho.
Ah, sou o Ítalo, não o Anônimo!
ResponderExcluirDepois de uma semana exaustiva e uma sexta-feira corriqueira, me afundei nos seus textos e me deliciei com eles, nada tenso nem tão pouco cansativo. Estarei entrando diariamente no site à espera ansiosa da sua próxima crônica.
ResponderExcluir"Essa semana fui me depilar, a mulher quase me queimou, fiquei ardida e toda dolorida, e meu casinho nem ao menos reparou o corte Hitler que dei na minha MICHELE (assim que costumo chamar minha companheira)" Queria muito ler algo sobre essa sina feminina DEPILAÇÃO
Linda homenagem...
ResponderExcluirquão bom seria que as Marias e Clarices, todas elas, pudessem ler esta crônica e se sentirem homenageadas...