Paciência

Por Fabio Rogério Piva (Campinas, SP)

PRIMEIRO LUGAR no 1º Concurso Mulherices de Textos Inéditos

Toda vez que ligamos a TV ou abrimos o jornal, tropeçamos em algum palpiteiro irritante / distinto especialista discorrendo solenemente sobre sua própria teoria de o que aflige a sociedade. E são tantos os vilões, que estamos ficando rapidamente sem novos candidatos: A falta/excesso de espiritualidade, a ganância, a pobreza, a fome, a obesidade, o sei-lá-o-que-do-diabo-a-quatro. Teorizar sobre as mazelas do mundo parece ter se tornado modinha entre os desocupados de plantão. Assim, eu que não sou médico, jornalista ou dono da verdade – e sou, portanto, um desocupado – me sinto na obrigação civil de contribuir para a discussão: acredito que a principal razão do apocalipse moderno é a paciência. E justifico com um sem-número de argumentos sem pé-nem-cabeça incontestáveis, do jeitinho que manda o figurino.

Em um mundo sem paciência, não existiria a burocracia. Ninguém se submeteria às papagaiadas e protocolos intermináveis que encaramos diariamente para absolutamente tudo – desde sair com alguém do sexo oposto até renovar um documento qualquer. Seria, portanto, um mundo mais eficiente, e a seleção natural já teria se incumbido de nos livrar desses tipinhos detestáveis que são os burocratas – certamente alguém já teria adentrado algum escritório do Detran com uma espingarda em punho e teria cometido um genocídio, em múltiplas vias e com firma reconhecida.

E se a extinção da burocracia não é benefício suficiente, também não existiriam guerras. Exército nenhum aguardaria calmamente pelas discussões de cúpula dos importantes governantes, tampouco por algum plano mirabolante de seus comandantes – e a coisa toda provavelmente seria resolvida em um dia ou menos, fosse através de uma carnificina total, fosse em um torneio de jo-ken-pô (qualquer coisa para acabar logo com aquilo ali e poder voltar para casa a tempo de assistir o futebol).

No âmbito tecnológico, experimentaríamos evoluções dignas dos filmes de ficção científica, sem esse atraso de vida que é a paciência. Ninguém se aventuraria a perder horas lendo manuais de eletrodomésticos, ou instalando aparelhos diversos – o que quase sempre nos leva ao desespero da imersão total em um novelo de cabos elétricos. Cabos, aliás, não existiriam – os impacientes cientistas já teriam inventado algum tipo de transmissão elétrica sem fio, ao invés de concentrarem seus esforços em discussões menos pertinentes – como aquela de se um cigarro reduz a vida do indivíduo em dois minutos ou um minuto e trinta segundos [sabemos que o cigarro não é amiguinho do corpo – podemos mudar de assunto para algo menos óbvio, agora?].

No escopo tupiniquim, também notaríamos sensível progresso no comportamento do povo varonil – que, se não fosse tão tolerante, já teria aprendido a votar. Acredito que não exista nada mais irritante do que essa filosofia idiota do “ah, se ele for um mau governante, é só por quatro anos mesmo...”. Quatro anos? Rá! Sem a paciência, quatro anos seriam uma eternidade. Como são, aliás – só que ninguém se lembra disso ao apertar os botõezinhos da urna eletrônica. Já a próxima Copa do Mundo – essa sim, parece estar sempre muito distante.

Por tudo isso, abdico voluntariamente da minha paciência. Taxem-me de radical, mal humorado ou o que for – não dou a mínima. Daria, se conservasse ainda um pouquinho do “dom” abdicado – o que não pretendo fazer. Não quero mais ter que respeitar o protocolo, aguardar o andar da carruagem, discutir o sexo dos anjos – quero soluções simples para problemas simples, iniciativa própria, o erro honesto buscando o acerto. E vejo com melhores olhos as pequenas contribuições individuais, que as debatidas soluções universais tão divulgadas atualmente. Acredito que um dia a humanidade dará um basta à embromação e riscará do mapa essa pataquada de esperar que tudo se resolva por si só – e gostaria de ainda estar por aqui quando isso acontecer.

E enquanto esse dia não chega, eu finjo ter paciência.

"Paciência"

(Lenine / Dudu Falcão)